Envolvendo mais comportamento do que matemática, desde muito cedo é possível abordar o tema junto aos filhos e nas salas de aula
Em um cenário de muito endividamento e inadimplência, sobretudo após a pandemia, é cada vez mais necessário o planejamento e a educação financeira desde muito cedo, para que as crianças possam evitar este tipo de situação quando adultas. Hoje, a inadimplência atinge 43,72% da população adulta do país.
E, ao contrário do que muitos podem pensar quando o assunto é planejamento financeiro, os cálculos não são apenas coadjuvantes, sendo o comportamento o principal tema a ser abordado. Com isso, crianças pequenas podem ser introduzidas à educação financeira, em situações rotineiras.
Administradora, Pamela Queiroz Cruz, de 35 anos, ensina à filha Isabel, de 3 anos, que é importante ter consciência dos gastos. “Ela sempre viu a gente trabalhando muito, com a pandemia e o trabalho home office. Ela gosta de nos imitar e a gente conta que trabalha para ter dinheiro, pagar contas. Somos adventistas e ela também faz a oferta do dízimo dela aos sábados, gosta de ajudar, tem o cofrinho dela. Fazemos essa introdução em um contexto lúdico”, conta.
Pamela diz que muitas coisas partem de Isabel, do que ela aprende na escola também. “A gente faz a educação diariamente. A escola envolve em alguns movimentos e a gente trabalha também. Teve o Dia da Água e ela fala que não pode desperdiçar, então na hora do banho eu falo isso. Agora que ela alcança, ela desliga a luz também.”
Para Pamela, dentro de casa há a base da educação financeira. “A gente acaba reproduzindo algumas coisas que aprendeu com os pais. Meu pai sempre falou na hora do banho que era pra gente economizar, sempre foi rígido. Eu tinha mesada e tinha que economizar meu dinheiro. Às vezes meu pai falava que não tinha dinheiro e a gente pensava ‘como um adulto não tem dinheiro?’ e hoje vemos que que realmente às vezes não tem. É natural introduzir isso na vida da Isabel, a gente fala que fruta não cai longe do pé e desde bem nova a gente vê que ela aprende as coisas.”
INTRODUÇÃO
PhD em Educação Financeira e autor de dezenas de livros sobre o assunto, Reinaldo Domingos lembra que há uma situação quase cultural de endividamento. “Temos uma sociedade que soma mais de R$ 70 milhões de inadimplentes. 95% dos provedores de residências e até de aposentados na inadimplência e endividados. A dívida não é um problema, ela te leva a consumir, ter uma casa, antecipar necessidades ou sonhos, mas deve ser pensada.”
“Desde criança, quando você pega seu primeiro recurso financeiro, você é estimulado a gastar, comprar guloseimas. A criança não precisa estar alfabetizada e conhecer os números para ter educação financeira, é uma ciência humana, não exata, trabalha comportamento e pode ser ensinada às crianças menores, que não conhecem números ainda. A criança entende que dinheiro compra doces, brinquedos”, explica.
Reinaldo diz que as famílias precisam se reunir e juntas discutir finanças, inclusive com as crianças, de uma maneira que elas entendam. “Depois que se alfabetiza uma criança, ela passa a conhecer números, aprender. Mas não estou falando de aprender juros compostos e aplicações, é aprender sobre o dinheiro que passa pela mão da criança e ela não sabe usar, continua gastando tudo que recebe. Depois, no ensino médio, se não teve antes uma orientação sobre o comportamento financeiro, vai pegar um primeiro salário e gastar tudo também. 25% dos jovens que começaram a trabalhar, entre 16 e 25 anos, estão inadimplentes”, lembra.
O educador financeiro fala que o gasto precisa ser apresentado como um sonho, um desejo que a criança ou a família tenha. “A criança precisa de três cofrinhos, um menor, para curto prazo, outro um pouco maior, para médio prazo, e um terceiro, grande, para longo prazo. É preciso ensinar que a criança não está guardando dinheiro no cofrinho, são sonhos, desejos.”
BASE
Educadora financeira, Cintia Senna diz que a trajetória das pessoas geralmente as levam a um cenário de dívida. “O que conseguimos observar, principalmente para quem entra no mercado de trabalho, é que a pessoa não sabe o que fazer com o dinheiro e busca alguma referência. Como nossos pais muitas vezes também não sabem lidar com dinheiro, o jovem chega à inadimplência por não saber usar bem os recursos. Ele acha que tem que gastar tudo e não precisa reservar uma parte. Então ele vê um tal de cheque especial, que está ali para usar, um cartão de crédito, que dá uma margem maior de gasto. Acho que o endividamento é mais uma questão cultural do que do sistema financeiro.”
Cintia lembra que educação financeira agora é ensinada nas escolas, mas em casa é preciso ter reforço. “A educação financeira já foi incluída como item obrigatório nas escolas desde 2020, mas não é disciplina, é trabalhada de maneira transversal em diversas disciplinas. Também tem a responsabilidade da família. A criança é lúdica e observadora, então não adianta só o cofrinho e uma orientação de economia se no dia a dia ela vê diferente”, explica.Com o uso mais amplo da internet e a exposição de crianças jovens a conteúdo publicitário, a educadora financeira vê uma deixa para a orientação dos pais. “Quando insiro a criança em uma realidade, do que é importante ter ou não ter, os pais precisam falar ‘não’ às vezes. Mesmo com essa avalanche de publicidade, a criança pode ter consciência e já existem filtros para pais configurarem esse volume de propagandas.”